domingo, 29 de agosto de 2010

O JOVEM NAS LETRAS DE RAP



In The Guetto


Quando a neve voa
numa fria e cinza manhã de Chicago
um pobre bebezinho nasce
no gueto
e sua mãe chora
porque essa era uma coisa que ela não precisava
é outra boca faminta para alimentar
no gueto
pessoal, vocês não entendem
a criança precisa de uma mão que o ajude
ou ele irá crescer para ser um homem raivoso algum dia
olhe para eu e você
nós estamos tão cegos para ver,
simplesmente viramos nossas cabeças
e olhamos para o outro lado
bem, o mundo gira
e um garotinho faminto com um nariz escorrendo
brinca na rua enquanto um vento frio sopra
no gueto
e sua fome queima
então ele começa a vagar pelas ruas à noite
e ele aprende como roubar
e ele aprende como lutar
no gueto
então uma noite em desespero
um jovem foge
ele compra uma arma, rouba um carro,
tenta correr, mas ele não consegue
e sua mãe chora
assim como uma multidão reunida ao redor do jovem furioso
caído na rua com uma arma em sua mão
no gueto
como o homenzinho dela morreu,
numa fria e cinza manhã de Chicago,
outro bebezinho nasce
no gueto. [1]




A letra acima, do repertório gospel de Elvis Presley cantada na década de 1960, apesar da cidade e da época ser outra, consegue apresentar, em linhas gerais, o clima dessa apresentação. Fome, desespero, atitude, morte. A violência que vitima o jovem que nasce sem condições de sobrevivência na cidade.
Analisar a canção é tentar compreender as experiências de jovens. Usar a canção como fonte é tentar descobrir o universo interior de jovens numa fase na qual aparecem os questionamentos de valores sociais. Esse universo mental pode ser decodificado através da trama e dos símbolos musicais (na minha pesquisa, a letra). A análise da canção enquanto fonte pode possibilitar a observação de como os elementos simbólicos disseminados pela expressão artística influenciam no comportamento e cotidiano das pessoas, ajudando na construção de um imaginário social[2].
Somente no século XX a juventude passa a ser reconhecida como um grupo social especifico nos estudos das ciências humanas. Aparece a adolescência como etapa social distinguível, já que antes não havia separação entre o mundo infantil e o mundo adulto. Boa parte dos estudiosos dos movimentos juvenis destaca ou conclui que existem tradições da juventude caracterizadas por manifestações de revolta, potencial para a crítica social, vontade de transformar as condições de vida nem sempre favoráveis. O descontentamento é a principal expressão dos jovens.
Neste sentido, a juventude é vista como uma reserva revitalizante da sociedade, questionadora do social e seria a pioneira predestinada a qualquer mudança na sociedade. Os movimentos juvenis foram vistos, nas suas formas de expressão e manifestação, como combativos e contestadores. Expressam, por meio de sua ação ou vestuário, revolta, descontentamento, resistência contra todas as mazelas da sociedade na qual estão se inserindo. O objetivo deles é denunciar o que está errado negando o que não querem[3].
Tal qual essa canção de Elvis Presley, outra é capaz de traduzir, em seus versos nus e crus, a dura vida de jovens pobres e excluídos nas grandes cidades, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil – o RAP.
O RAP (rhythm and poetry) é a mais forte expressão da cultura hip-hop. Foi criado por jamaicanos em Kingston e desenvolveu-se no Bronx, Nova York, no fim dos anos 70. Transformou-se num forte veículo de contestação e denúncia das agruras dos grupos marginalizados que ocupam as periferias nos Estados Unidos. Jovens de origem afro-americana e caribenha. As raízes do ritmo e da poesia remontam as antigas tradições de oralidade da cultura africana: os griots, que eram contadores de histórias e das tradições das tribos africanas. Em São Paulo, foi desenvolvido, em meados dos anos 80, em encontros de jovens de periferia na Praça da Sé e na Estação São Bento do Metrô[4] de São Paulo.
Nessa apresentação, pretendo mostrar recortes de como parcela dos jovens de periferia se vê, analisa sua vida num ambiente social violento, sem perspectivas, saídas, oportunidades, somente a esperança de uma vida melhor. Como o jovem é representado no universo rapper.
Pode-se pensar o RAP como um espaço de disputas, caracterizado por mudanças e transformações, mas também por resistências e permanências, que permite a análise de uma série de questões e problemas sociais, tais como: etnia, classes sociais, violência, entre outras. Ao mesmo tempo em que criticam a sociedade de consumo, pelo fato de não se sentirem pertencentes, sonham em poder comprar, também consumir. De forma que fica difícil demarcar a fina linha que divide o discurso contra-ideológico do discurso de integração presente na canção RAP.
Neste sentido, se dá um processo de simulação de força, transformando o RAP numa tática lingüística eficiente de driblar os contratos e alterar, através do jogo lingüístico do poema, as regras de um espaço opressor[5]. Vários aspectos podem ser observados através do desenvolvimento das rimas denunciadoras e críticas em relação às questões das discriminações étnicas e de classe.
Facção Central, grupo de RAP da Cidade de São Paulo, produziu, em 2000, um vídeo clipe no qual mostrava como era arquitetado um seqüestro. O vídeo clipe, veiculado pela MTV, primava pelos detalhes. A música era “Isso aqui é uma Guerra” do CD “Versos Sangrentos”. A repercussão foi enorme. Chegou a provocar investigações e prisões dos integrantes do grupo sob a acusação de apologia ou incitação ao crime.
Na produção seguinte, “A Marcha Fúnebre Prossegue”, Facção Central respondeu aos oficiais de justiça e policiais. Explicou que a intenção era denunciar a “guerra civil” qu acomete os excluídos das periferias das grandes cidades brasileiras. Essa guerra transforma esses excluídos em soldados ou vítimas da “guerra”.
A letra de RAP do grupo Facção Central apresentada aqui é, na minha opinião, a que melhor sintetiza os objetivos da música RAP e do movimento hip hop, do qual o RAP é elemento integrante:


“Apologia ao Crime - Faccão Central
(CD: A Marcha Fúnebre Prossegue)


Não queria te ver na maca cuspindo sangue
quase morto no hospital com uma par de tiro
tomando soro
nem catando pionner do escort nem enrolando a língua
morrendo de overdose
esquece a doze o cachimbo a rica cheia de jóia
já vi por um real bisturi de legista em muito nóia
não seja só mais um número de estatística
um corpo no bar vitima de outra chacina
é embassado saber que a propaganda na tv
de carro casa própria não foi feita pra você
saber que pra ter arroz feijão frango no forno
tem que pegar um oitão e desfigurar um corpo
entendo o motivo sou fruto da favela
sei ver qual a dor de não ter nada na panela
de dividir um cômodo de dois metros em cinco
um quarto sem luz água sem sorriso
só que truta o crime é dor na delegacia
choque solidão agonia te dão uma 1.40
com silenciador e mira
pra você estraçalhar com o caixa da padaria
da mercearia drogaria pra que um dia
sua família reze sua missa de 7º dia
o boy de role de cheroki vidro fume
é armadilha do sistema pra matar você
Refrão: Não caia na armadilha siga a minha apologia
mesmo de barriga vazia esquece a jóia da rica
não caia na armadilha siga a minha apologia
sua missa de 7º dia ta de importado na avenida
Corrente de ouro carro do ano tudo ilusório
farinha bicarbonato velório
traficante vi vários com uma pa de funcionários
de BMW dando dinheiro pra delegado
comemorando o ano novo descarregando a draga pra alto
terminando sem um centavo
na doze do soldado de fuzil granada nove
nunca ninguém voltou com um malote do carro forte
sempre o mesmo fim mãe chorando no caixão
o mano planejando rebelião na detenção
mordida de cachorro esculacho do gói
só que te lá dentro sabe o preço de matar o boy
se que muito pouco sonha apenas com comida
quem não quer ter uma casa com piscina
um cargo bom ao invés de comer lixo
um carro importado ultimo modelo esportivo
só que o conforto não vem através do revolver
do sangue da refém milionária temendo a morte
o gambé não quer saber seu motivo
quer sua cabeça na parede igual a um corpo abatido
não interessa se é pro remédio da sua mãe
pra fumar crack ou beber champagne
se invadir o condomínio gritando assalto
caiu na armadilha até no teto vai ter seus pedaços
Refrão
Querem você virando a cadeia matando estuprador
exigindo o governador o juiz corregedor
querem você num opala metralhando pa
chacina de numero trezentos pro sptv noticiar
por isso não tem um de nos no congresso na câmara
aqui é só ladrão estado vegetativo na cama
ou cadeira de roda tiro na espinha
por um par de tênis um risco de cocaína
nossa vida vale menos que um real
aqui pobre só presta pra doar órgão no hospital
por isso vai pra colégio tentar ser o arquiteto
não faço os porcos aplaudirem mais um nóia analfabeto
invadindo a coroa pra fumar um radio
da bonde traficante amanhece esquartejado
pega sua 386 e faz a planta do banco
atira no segurança chuta o refém que esta chorando
cata o malote esvazia o cofre
descarrega na cabeça do gerente sua nove
ou poe a roupa de carteiro pra enganar o porteiro
enquadrar um prédio inteiro e roubar jóia dinheiro
pras 6 horas eu te ver no cidade alerta
algemado com hematoma tipo cachorro numa cela
o sistema te que chorar mas não com você matando na rua
o sistema tem que chorar vendo a sua formatura”.




Durante a leitura e audição dessa música, a capacidade que esses jovens têm de entender, por sofrer na pele, que há um projeto de extermínio dos jovens pobres e excluídos. Essa é uma tese forte, que contesta, desmascara ou afronta os discursos oficiais sobre a violência. Aquele que os ideólogos dos aparelhos repressores do Estado teimam em apontar como sujeitos da violência, são, nas letras de RAP do Facção Central as primeiras e principais vítimas de um sistema capitalista perverso e excludente, que tolhe o ser humano de poder subsistir.
A não ser que você, interlocutor, seja um pobre, um excluído das periferias e favelas das cidades brasileiras, não dá para imaginar o que é crescer sofrendo essa violência, sem teto, estômago vazio, sem escolaridade, sem saída.
Quando não há mais saída, quando a situação é extrema, ele, o jovem excluído é tomado pela consciência das ciladas armadas para os jovens pobres das periferias brasileiras. É neste momento que o jovem descobre as respostas para as suas perguntas: Por que é mais fácil conseguir uma arma, algumas pedras (tóxico), copos de aguardente, do que comer uma refeição completa, aprender o que poderia ser um instrumento de redenção, ter lazer digno? Por que ele não teve acesso ao que a sociedade do consumo pode ter, será que a propaganda não foi feita para ele? Por que é extremamente difícil para a família colocar o mínimo dos alimentos na mesa? Será que isso não poderia acontecer sem o crime? Como fazer para que a fome pare de queimar ou doer?
As perguntas se multiplicam. Por que ter de morar em péssimas condições, em um cubículo, sem água, luz ou esgoto? Por que, na escola não ensinaram para ele o valor do pobre, o porque da pobreza e da exclusão. Ou até tentaram e ele não queria ou podia entender? Por que projetam uma escola a cada quatro presídios? Por que não tem livro ou biblioteca na favela?
As denúncias de violências policiais são recorrentes nas letras de RAP. Por que, para a polícia, ele é mais perigoso cuidando de carros do que um traficante ou um jovem rico que financia o tráfico, mas mantém as contribuições mensais para as autoridades responsáveis em coibir ou punir esses crimes?
Ele toma consciência de que se desandasse não teria outro futuro senão a tortura no cárcere. Agora, sabe porque a maioria dos colegas nervosos desaparecia por um tempo ou para sempre. Agora sabe que se morrer, vários vão lucrar, a morte é lucrativa na cidade, os cemitérios são verdadeiras máfias;
Os sonhos dele eram simples (para algumas pessoas): comer, estudar, profissão, trabalhar, poder ter uma casa, carro e família – porém para as suas condições eles eram impossíveis.
Nasce a consciência de que todo o sistema depende dele, de sua atitude – na hora em que ele perdeu o rumo, justificou a enorme verba do judiciário, da segurança pública, do sistema policial e carcerário. Eles precisam da sua fúria para existir.
Por que ele só percebeu esse projeto tarde demais? Com sede, vendo o seu sangue se esvair no asfalto. “A luz do fim do túnel apagou”. Agora ele sabe o que o sistema não queria dele: que estudasse.
Como canta o Mano Brown: “A gente sonha a vida inteira e só acorda no fim, minha verdade foi outra não dá mais tempo para nada”[6].
Há na cidade de São Paulo, por exemplo, uma desordem bem vinda e tranqüilizadora: “Se uma das funções das guerras entre as nações foi resolver a questão do excesso populacional dos países envolvidos, essa nova guerra privatizada do final do milênio parece contribuir para eliminar uma parcela cada vez mais considerável dos chamados, ora ‘excedentes’, ora ‘marginais’, ora ‘excluídos’”[7].



Notas
[1] Esta música foi escrita por Scott Davis e interpretada por Elvis Presley, a tradução foi feita pela Professora de Língua Inglesa Ivete Hara.
[2] Ana Bárbara A. PEDERIVA. Enrolando o rock: a internacionalização do rock and roll In: Revista Unicsul. São Paulo: UNICSUL, Ano IV, nº 6, dezembro de 1999. p. 161.
[3] Panorama de contextualização fundamentado no estudo de GRACIANI, Maria Estela Santos.Gangues: um desafio político-pedagógico a ser superado. S/d. Mimeo.
[4] Spency K. PIMENTEL. O livro vermelho do hip-hop. Trabalho de Conclusão de Curso. ECA/USP, 1997. Pode ser encontrado em www.realhiphop.com.br .
[5] CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 79,84,85 e 86.
[6] Um Homem na Estrada – Racionais MC’s – 1993.
[7] ZALUAR, Alba. Para não dizer que não falei de samba: os enigmas da violência no Brasil. In: SCHWARCZ, Lilia Moritiz (Org.). História da Vida Privada no Brasil: contraste da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, VOL. IV, p. 263 .

Nenhum comentário:

Postar um comentário